O museu ardeu em chamas. A língua portuguesa desabou em lágrimas. Na última segunda-feira (21), parte da Estação da Luz pegou fogo e atingiu em cheio um patrimônio cultural e arquitetônico valiosíssimo da cidade. Acidente? Coincidência? Negligência? Ainda não há laudo oficial, mas extra-oficialmente podemos fazer algumas reflexões.
Antonio Carlos Olivieri, jornalista, mestre em filologia pela Universidade de São Paulo (e, é claro, meu progenitor) resume a tragédia com uma única palavra: “lamentável”. Apaixonado pelo centro de São Paulo como eu (ou eu como ele), meu pai certamente sentiria a mesma comoção que senti ao desembarcar na estação Luz da Linha Amarela e sentir o cheiro de fumaça um dia depois do incêndio, andando pela Amaral Gurgel. Para ele, “não houve preocupação com a conservação, [mas] o maior prejuízo é arquitetônico, já que o acervo é digital”.
No passado, a estação recebia os imigrantes que embarcavam no Porto de Santos e são responsáveis pela cultura plural que hoje permeia a cidade. A Estação da Luz, portanto, é parte indissolúvel de nossa história — até genética.
Acidente

Marcelo de Lima, engenheiro e especialista em proteção a incêndios questionou em seu perfil no Facebook: “A primeira coisa que chama a atenção é a frase ‘estrutura de alvenaria e concreto’. Quando queimou não parecia que a estrutura do telhado era de madeira?”. Na sua opinião, o museu não dispunha de equipamentos suficientes para prevenir um incêndio dessas proporções, mas a questão não é tão simples. Ele explica:
“[Os equipamentos] não eram [suficientes], mas a resposta não é simplesmente sim ou não. O que precisamos perguntar é se ao cumprir as exigências dos bombeiros o local pode ser considerado seguro, é seguro para quem? Os códigos de incêndio em todo mundo são feitos com o objetivo de permitir que as pessoas que estão no edifício saiam com vida. Isso, sem dúvida, é a principal preocupação, mas no caso de um museu só isso não basta. É preciso também se preocupar com o patrimônio material, pois esta é a razão de existir do museu. O código de incêndio foi atendido, as leis foram cumpridas, mas o edifício histórico queimou completamente. Entendeu?”
Outros instrumentos poderiam ter ajudado a evitar o incêndio, mesmo que os materiais que suportavam os acervos fossem altamente inflamáveis. “O sistema mais indicado seria o sistema de sprinklers automáticos. Geralmente são necessários somente dois ou três bicos abertos para apagar o fogo”, diz Marcelo. Acidente? Pode ser. Mas isso traz em si o pensamento de que poderia ter sido evitado, como a embriaguez ao volante.
Coincidência
Não encontrei o autor, mas algumas pessoas reproduziram no Facebook uma postagem que relacionava os incêndios de 2008 no Cultura Artística, 2010 no Instituto Butantan e 2013 no Memorial da América Latina, além da alternância desses incêndios com os de favelas em área de especulação imobiliária. Acho que isso tem cara de teoria de conspiração — exceto com relação às favelas, que na minha opinião pessoal podem sim ser incêndios criminosos. De qualquer forma, como disse meu pai, fica óbvio que “não houve preocupação com a conservação”: a tapeçaria de Tomie Ohtake perdida no incêndio do Memorial obviamente não tem cópia digital. A arte é parte da história e, aparentemente, não há preocupação do poder público em conservá-la.
Negligência
O Museu da Língua Portuguesa não tinha autorização dos bombeiros para funcionar. “É necessário que o estabelecimento submeta um projeto técnico de segurança. Após a vistoria e estando tudo de acordo com a legislação, é expedido o AVCB (atestado de vistoria do corpo de bombeiros). Com esse atestado é que a prefeitura vai emitir o alvará”, explica um cabo da ativa do Corpo de Bombeiros de SP*. Conforme apurado pela imprensa, o projeto chegou a ser enviado, mas a prefeitura não deu andamento no processo. Um coronel da reserva que também pediu anonimato* vai além:
“O alvará é emitido pela Prefeitura. O Corpo de Bombeiros não tem poder de polícia para embargar qualquer estabelecimento em SP. Essa autorização foi dada na gestão da Marta que era prefeita na época, desta forma conclui-se que passaram por cima da vistoria do CB”
Segundo ele, os bombeiros não podem ser responsabilizados se não realizaram a vistoria que embasaria um parecer e permitisse a emissão do alvará.
O especialista Marcelo conclui: “tudo que leio na imprensa é muito superficial, é só quer saber se a lei foi cumprida, e quem é o culpado. Muitas vezes há negligência, e muitas vezes cumprir toda a lei não quer dizer está seguro”, e diz que é preciso rediscutir no Estado de São Paulo a proteção aos edifícios históricos e culturais para que não ocorram novos casos.
Tudo é hipótese

Antes do laudo oficial — que convenhamos, Santa Maria e a boate Kiss estão aí para provar que pode acabar sendo mais um jogo de empurra-empurra que só contribui para a impunidade — qualquer consideração que façamos é mera elucubração. De fato concreto só temos a perda de um patrimônio histórico irrecuperável, palco de muitas histórias que se confundem com a da construção de São Paulo, e a lamentável morte do bombeiro civil que, sozinho, tentou controlar o incêndio.
A Torre do Relógio sobreviveu, mas não poderá contar a história para as gerações futuras. Resta torcer para que a memória coletiva, tão curta e seletiva, mantenha nem que no íntimo de suas entranhas a lembrança dessa perda para transmiti-la às gerações vindouras, e quem sabe essas gerações verão o museu reconstruído. Tão já, duvido que isso aconteça.
*(Os policiais pediram anonimato por tratar-se de posicionamento pessoal e não oficial, e recomendaram aguardar o posicionamento do comando do Corpo de Bombeiros. A identidade de ambos é protegida pelo artigo 5° da Constituição Federal no que tange ao sigilo da fonte, que inclusive sobrepõe qualquer lei ou código militar).
Comente!