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Existindo nas Semelhanças: a Faculdade Mimética de Benjamin

Para fazer essa reflexão vou recorrer ao texto “A Doutrina das Semelhanças” de Walter Benjamin” (na íntegra aqui, em outro site isento de nossa responsabilidade), que me traz um agradável sentimento de nostalgia justamente por ter sido o primeiro texto que redigi na faculdade de filosofia — e que, confesso, não recebeu uma nota muito boa. Quanto ao estilo, não sei se posso classificar como artigo ou resenha crítica e deixo essa decisão para o leitor — para mim é simplesmente uma despretensiosa reflexão e um mea culpa comigo mesmo pela nota abaixo da média que recebi. Sintam-se convidados a criticar e comentar.

Coloquemos como ponto de partida que todo indivíduo é provido da capacidade de mimese. Em sua infância, observa o comportamento dos adultos ao seu redor e começa por reproduzí-los — a exemplo, a linguagem e a comunicação gestual. Todavia, dotado de razão e particularidades, esses elementos são incorporados ao seu modo de agir e reelaborados para criar uma forma própria. Nesse momento o que era imitação passa a ser uma semelhança do objeto que a originou. A essa altura é importante deixar claro que mimese (ou semelhança) não é o mesmo que imitação. Veja que a capacidade de perceber semelhanças não está restrita ao comportamento (ou faculdades cognitivas): as brincadeiras infantis, por exemplo, são impregnadas de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também moinho de vento e trem (BENJAMIN, 1933). Lembro que durante minha infância adorava caixas de papelão para decorar com desenhos a caneta e transformá-las em carros ou naves espaciais — e elas em nada se pareciam com as naves que apareciam nos programas de ficção científica.

As culturas antigas utilizavam muito mais a faculdade mimética: a prosperidade da colheita poderia depender da vontade de um “deus” em particular, uma representação de fenômenos climáticos. O Sol, sagrado pelos egípcios, era representado por uma figura antropomórfica que nomearam como Rá — costume, aliás, reproduzido por diversas religiões. Um dos exercícios mais interessantes ao meu ver e citado por Benjamin do uso da faculdade mimética é a astrologia: a relação entre o indivíduo e a posição dos astros no céu no instante de seu nascimento, identificando planetas com traços de personalidade. Desenvolvendo um pouco mais esse argumento, tracemos um paralelo entre o tempo do homem e o tempo dos astros: se para o recém-nascido o parto representa um instante único dentre certo intervalo de minutos, quanto tempo esse intervalo representa para um planeta com milhões de anos? Podemos dizer que a faculdade mimética está submetida ao tempo?

Até agora não foi possível determinar como acontece o processo de mimese, uma vez que ele se aproxima mais do irracional — ou talvez ele seja justamente uma forma de fazer a razão perceber o abstrato. Quando o homem antigo atribuía símbolos à natureza, existia ali uma espécie de comunicação, de proximidade. Não sendo possível explicar como o Sol pode ser semelhante a sua personificação como Rá, que a influência de Marte é associada a comportamento belicoso e o que há em comum entre Plutão e o signo (uso essa palavra no sentido de símbolo, grafismo) de Escorpião, Benjamin diz que essa faculdade escapa ao domínio dos sentidos e pertence ao “extra-sensível”:

[…] naturalmente próxima das teorias místicas ou teológicas, sem com isso abandonar o âmbito da filologia empírica. […]É digno de nota que esta pode esclarecer a essência das semelhanças extrassensíveis, talvez melhor ainda que certas configurações sonoras da linguagem, através da relação entre a imagem escrita de palavras ou letras com o significado, ou com a pessoa nomeadora. […] É, portanto, a semelhança extrassensível que estabelece a ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e entre o falado e o escrito. (IDEM)

Mas o tempo do homem passou e muitas coisas mudaram: o monoteísmo deixou de admitir a relação com outros “deuses”, ainda que não fossem definidos como tal. Os fenômenos passaram a ser explicados por uma doutrina religiosa que não admitia outro ponto de vista. Com o advento da ciência e o Iluminismo, a autoridade religiosa cedeu espaço para a ciência, que através de postulados e experiências determinava o que era real e o que era mito. Não acreditar na ciência era como não acreditar na religião — dessa vez, sem a inquisição e as fogueiras, mas com a pressão popular que exercia o papel do Dr. Bacamarte. Infelizmente essa crença na ciência como autoridade única do saber perdura até hoje.

Ainda, todavia, que o culto à racionalidade e a crença na ciência como autoridade máxima do saber exerça um papel de integração na sociedade — quem é que quer ser trancado na Casa Verde do conto de Machado? — ainda é possível perceber a tímida existência da faculdade mimética em algumas coisas: se tiver filhos, saberá que dentre as instruções orais que você transmite e sua forma de agir, a segunda exerce nele muito mais influência consciente e subconsciente. E a mais óbvia, que está em evidência o tempo todo dentre os adultos independente de suas crenças e convicções e é indispensável para se inserir na sociedade: a linguagem. Não vou me arriscar a elaborar um argumento aprofundado sobre isso, que invade as áreas da psicologia, semiótica, linguística e muitos outros — sobre os quais tenho pouco ou nenhum domínio.

A evolução da comunicação é concomitante à do homem e é uma expressão evidente da faculdade mimética, desde a não verbal entre as crianças ou dos adultos com elas até a transformação dos grunhidos e reproduções onomatopeicas em vocábulos complexos e a posterior representação pictórica. É possível determinar como se formou a associação entre o objeto em si e sua representação oral?

[…] ao comportamento imitativo na formação da linguagem deu-se o nome de onomatopeia. Na esfera mais superficial da semelhança — a sensível — a onomatopeia é reconhecida como parte do comportamento imitativo na gênese da linguagem. […] A palavra escrita assemelha-se à falada por correspondências supra-sensíveis, assim como outrora assemelhava-se às coisas através dos hieróglifos, através de semelhanças sensoriais. (FURLAN, 1996)

Concordo com Benjamin quando diz que essa associação só pode ser extra-sensível, produto de uma associação entre sentidos e intelecto para criar algo tangível à razão e, principalmente, reproduzível de forma que outros compreendam. Infelizmente esse é um dos poucos traços restantes na ordem atual da faculdade mimética do homem: todas as antigas associações, a comunicação com a natureza, a crença no incognoscível foram relegadas à irrelevância, ao esquecimento ou restam encerradas dentro de pequenos grupos. Ainda assim, refletindo sobre o passado ou observando as poucas manifestações da doutrina das semelhanças nos tempos atuais, essa mimese continuará inexplicável. Metafísica. Extra-sensível.

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