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Algo de sagrado na contemplação

Começaria com um subtítulo, mas não há como falar sobre isso sem prestar minha homenagem ao grande mestre Guimarães Rosa — sem o qual não teria esse entendimento: “Matraga não é Matraga, não é nada”.

Nos últimos anos, tenho vociferado minhas indignações, revoltas e inconformismo com a realidade que me — e nos — cerca, não me limitando à catástrofe social a que fomos alçados a partir da ruptura do regime democrático consolidada nas últimas eleições presidenciais (cuja negação, a propósito, não tem a ver com otimismo — mas caso crônico de miopia ou descolamento da realidade).

Aqui irei destoar um pouco no tema e o tom de abordagem — o que pode causar estranheza para alguns, mea culpa. Não sou religioso e considero como válido um único dogma moral: a liberdade de agir como melhor me aprouver, o que é indissociável de arcar com as consequências de todos os atos.

Quando penso que a única razão que baliza grande parte dos indivíduos para eximir-se do extermínio da existência de outrém são palavras impressas em um livro de sacralidade questionável vejo quão sensata é a alegoria do anel de Gigez — e a propósito, apesar de fazer parte da mesma escritura e sem anel, o mesmo não tem tanta importância quando ao invés de proibir o homicídio repreende cobiçar a mulher do próximo.

Não nego que seria muito mais fácil me submeter a dogmas estabelecidos em algum livro sagrado ou ditados por algum sacerdote: infelizmente, sou incapaz de fazê-lo. Isso não significa que nego a existência da sacralidade e — pasme — tudo isso não é suficiente para me fazer ateu. Como Oswaldo Montegro, sou um homem inundado de sentimentos.

Naturalmente, minha percepção de sagrado está aquém das convenções estabelecidas pelas grandes religiões. Não se faz presente o tempo todo e, quando sinto, dificilmente posso traduzí-la em palavras. Como Augusto Matraga, percebo que o sagrado é intimamente ligado à contemplação, desprovida de qualquer pretensão.

Se contemplar é a percepção da sacralidade, somos muitíssimo afortunados! Não há qualquer objeto, forma, paisagem ou qualquer outro elemento presente em nossa existência que limite só para si a possibilidade da contemplação. Não se confunda contemplar com se maravilhar. Cada um tem seu objeto particular pelo qual acaba maravilhado, seja uma paisagem, um conjunto de cores ou as curvas e o toque da pele do corpo feminino — além de outros exemplos que, no momento, me escapam.

Já a contemplação acontece quando não se pode atribuir a origem do agrado, e ainda assim, toma de sobressalto todos os sentidos. Pode acontecer a qualquer instante, diante de qualquer elemento que habite a existência. Humanos que somos, infelizmente, não é algo durável ou um sentimento constante (a não ser que os orientais estejam certos sobre a existência do nirvana).

Se a contemplação é o sagrado, a natureza humana é o impedimento para vivenciá-lo perenemente. Talvez por isso, deixar-se guiar por sacerdotes e limitar-se a absurdos dogmas morais inadequados ao presente seja muito mais reconfortante.

Nem todos conseguem despir-se de suas crenças para simplesmente contemplar, e possivelmente, essa é a razão para que os lampejos de sacralidade que, de vez em quando, aparecem em nosso cotidiano, infelizmente, passam despercebidos para quem insiste em viver desatento. Mais triste que isso: desatentos são a maioria.

Deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo — a manhã mais bonita que ele já pudera ver

Temos muito o que aprender com Matraga (e muito a agradecer a Guimarães Rosa)

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